Top 50 da CENA Especial – Uma retrospectiva do ano em dez músicas, estrelando Don L, Emicida, Lia de Itamaracá, Tori, Mateus Aleluia e mais

Assim como fizemos no Top 10 Gringo, chegou a hora de revisar nossa análise da CENA, um espaço que há cinco anos vem destrinchando semana a semana as novidades da música brasileira, trazendo uma espécie de parada com 50 das músicas mais significativas que consideramos.

Ao misturar artistas estabelecidos, de todas as idades e cantos, com gente nova e independente, colocando a conversa em um eixo só, sentimos que de alguma forma contribuímos para ver a música brasileira mais ciente de si. 

Exemplo: Don L, nosso primeiro lugar, é o predileto de um artista da popularidade de João Gomes – para ficar em um parâmetro, João é dez vezes mais ouvido em uma plataforma como a Spotify. Mesmo assim, eles conversam, se frequentam, se respeitam e se influenciam. E encontros dessas diferentes proporções, impensáveis até outros dia, estão cada vez mais comum. Pense no Paulo Miklos. Foi de uma turnê em estádio com os Titãs para a nossa vanzinha no Circuito para se apresentar com a superindie Papisa. É o movimento da CENA brasileira, constante, pulsante. 

Que em 2026 as fronteiras entre os artistas do país fique ainda mais invisível. 

A lista a seguir não é das melhores músicas do ano, mas um retorno às análises que sentimos que fazem mais sentido, as mais legais ou bem elaboradas ou responsáveis por boas conversas.

‘Eminência parda” é um influente, um poderoso sem cargo oficial. Originalmente, pode ser entendido como o manipulador de alguém com um cargo real, o braço direto de um presidente, um empresário poderoso, o crime organizado, por aí vai nos exemplos. Emicida na faixa “Eminência Parda” extrapolou o significado da expressão ao cantar sobre sua própria influência, o poder do rapper em alterar os rumos da cultura (“Não sou convencido, sou convincente/ Aí, vê na rua o que as rima fizeram”). Aqui, Don L explode os significados ao trocar um ‘e’ pelo “i” e inventar um novo dito – uma letra muda o fim do filme. Iminência é o que está para acontecer. A iminência parda pode ser entendida como algo extra oficial que está por vir – uma revolução? O “pardo’ também tem seu sentido multiplicado. Emprestado da expressão original, agora pode se referir também à violenta miscigenação brasileira. Cabe aos filhos da violência colonial qualquer mudança possível contra “os donos do estado que ainda são os filhos dos senhores de escravos”. Talvez tenha mais aí, certamente tem. A letra é também uma longa revisão biográfica do próprio Don, uma reavaliação de tudo que rimou até aqui (“Me fecharam portas/ Eu dobrei a aposta). Uma vez confrontado com uma questão de vestibular, pedindo explicação sobre um verso seu, Don L afirmou que marcaria as quatro opções dadas – polissemia é mato na sua escrita. E ainda nem falamos da música em si. A base usa um sample quase na íntegra como refrão, mas não permite que essa vire a cama da música – o método mais comum ao se usar um corte longo. Aqui, o sample é faca afiada cortando o fluxo dos versos. O corte abrupto não pede atenção para dar recado, pede a atenção que te exige swing para escapar de um ataque, da morte iminente.

A nota mais repetida com “Emicida Racional VL 2 – Mesmas Cores & Mesmos Valores” é de que ele voltou a rimar como no começo, pesadão. Vale como metáfora, mas uma ideia importante fica pelo caminho. Seu lado mais agressivo das batalhas nunca foi abandonado. O bem-sucedido projeto “Amarelo” pode soar fofo e pop, mas sua sugestão é radical:  imaginar a vida do preto no Brasil para além do “Negro Drama”. É 2025, mas o Brasil ainda amanhece com manchetes do tipo “Santa Catarina aprova fim de cotas raciais em universidades estaduais”. Outro exemplo: anos de trabalho na arte e o maior tempo que Emicida ganhou no “Fantástico” foi quando brigou com o irmão. Quanto vale o show? Uma pergunta que fica mais dolorida ainda quando o maior norte de Leandro vai embora: a mãe, Jacira. Tanto que é a ela que ele recorre para voltar ao trabalho. São os áudios deixados por ela que abrem o álbum, o mesmo onde recorre aos seus pais artísticos, os Racionais MC’s, para se reorientar. Embora retome “Cores e Valores” no nome e reconstrua diretamente sons do disco, Emicida vai muito além na homenagem e referências aos quatro pretos mais perigosos do Brasil, a ponto de fazer um som todo apenas com versos escritos pelo grupo. São tantas refs que temos um mar para ser investigado em cortes curtos por mil influenciadores nas próximas semanas. Mas saber de onde veio o que vale menos que entender que vieram do coração do compositor. Piegas? É o que é. Apesar de todas as canções autobiográficas até aqui, de todos os seus álbuns este é a biopic, nesse ele é o protagonista do filme. Um recorte radical espelhado no formato, nada pop: um som é uma coleção de áudios, duas são instrumentais, uma recitada e a outra é de “silêncio. Um refrão só dá as caras. Duas passam dos oito minutos (!!!). “Hoje deu certo o sonho”, diz Jacira em um dos áudios. É memo. Deu certo o sonho. E ainda tem o volume 1 por vir.

Temos um dos versos mais bonitos do ano: “Eu vou varrer as lantejoulas que eu chorei e você não viu”. São de BUHR (o nome que Karina Buhr quer ser chamada agora – “feito o barulho do fantasma: bu”). Na voz de Lia de Itamaracá aos 81 anos, então, os sentidos se amplificam. A canção faz parte da inédita parceria em disco de Lia com a cantora baiana Daúde. “Pelos Olhos do Mar” ainda traz inéditas de Chico César, Emicida, Céu, Otto e Russo Passapusso em mais um daqueles esforços comandados por Marcus Preto de colocar diferentes gerações para conversar. Afinal, quem não tem passado não há de ter futuro. Exemplo, como destaca Daúde, temos aqui: Lia mostrando sua força para além do coco e da ciranda. “Canta bolero, canção, divide com outra artista dentro do estúdio. É uma outra veia que está sendo explorada que ela tem dentro dela.”

O convite de Tori não esconde os riscos: “Não sei se dou pé/ Mas venha”. Se o assunto é quente, o risco é queimar. Ou se afogar, para ficar na metáfora da música. Tori explora a ilha como uma descoberta, um refúgio para o náufrago, um novo relacionamento, mas aproveita a figura para falar também da solidão. “Pele com pele até que se revele”. Um dos detalhes mais legais da música é a bateria de Domenico Lancellotti, reconhecível no primeiro toque de vassourinha que ecoa até a voz de Tori tomar para si a canção. A produção da faixa é compartilhada entre os dois, que dividem espaço ainda com Francisca Barreto no violoncelo e Julia Guedes no piano. “Areia e Voz”, segundo álbum da artista sergipana, ainda fará barulho em 2026. Avisamos aqui. 

O álbum anterior de Mateus Aleluia, “Afrocanto das Nações”, era um museu, composições oriundas de sua pesquisa sobre a ancestralidade ritualística musical pan-africana. Era o compositor de olho no outro. “Mateus Aleluia”, disco solo que leva seu nome, indica voltar o olhar para si mesmo. Ou melhor, um automergulho, para ficar na metáfora indicada pelo mestre sugerida já na capa do trabalho. E mergulhos profundos exigem fôlego. O álbum é composto de seis faixas longas. A mais curta fica em sete minutos e a mais extensa tem 14, ao reunir três canções em uma só – um jeito interessante de segurar apressados atrás de um atalho na viagem. Nessa jornada prazerosa e contemplativa, Mateus canta muito sobre o amor e sua força implacável. “No Amor Não Mando” diz tudo no título. “O amor é minha lei” é o verso que marca a dolorida “Para Tentar Te Esquecer”. Já “Pantera Negra”, outra de amor, em suas mãos não é Marvel, é da mata. Passar esse tempinho com Mateus é encontrá-lo, óbvio, mas também é reencontrar a si mesmo. É diminuir o passo na corrida. Mais: é questionar a corrida. No violão doce e na voz grave, Mateus dá sua aula de respeito à música e suas exigências. Respeitemos menos o mercado e seus vícios. Só quem trata a música assim pode escrever algo da preciosidade de “Oh, música mostra-me a magia de eu só ser música”. A música que te agradece, Aleluia.

Branco dá a impressão de menos, mas é sinal de mais. Branco é todas as luzes. É o pós-Sgt. Pepper’s. Também é a cor da capa de “Big Buraco”, segundo álbum de Jadsa. E olha aí, a grandeza está no nome, entregando o conceito. Apesar de que “buraco” engana aí. Não representa fim ou vão, é uma porta/portal. Do outro lado da fotografia impressa na capa, que traz quatro Jadsas, encontramos ela na guitarra conduzindo um batalhão de músicos. O que não era possível em sua estreia agora se traduz em sopros, pandeiros, repiques, scratchs, rhodes e trompetes e mais. Muito mais. Um batalhão unido na criatividade, que teve pouco tempo para trabalhar, mas pensou em conjuntos os arranjos para as canções apresentadas. Quase tudo aqui em termos de arranjo é creditado a Jadsa, ao produtor Antônio Neves e a todos os músicos presentes em cada gravação. Nos timbres, um novo elo com a Elis dos anos 70 ou o rádio do anos 2000, palavra da guitarrista e cantora. Ou cantoras? A multiplicidade do disco transborda na voz de Jadsa. Repare em “Samba pra Juçara”, faixa escrita em parceria com sua “Big Mama”. Acredite, é só uma Jadsa ali. Mas não parece. 

O duo cajupitanga, de Vitória da Conquista, e Arthus Fochi, brasileiro que vive hoje na Dinamarca, nunca se encontraram pessoalmente. E ainda assim lançam juntos o álbum “Próximo”. A colaboração se deu também de forma quebrada. Fochi enviava improvisos instrumentais para o duo retrabalhar. Daí dá-lhe colagens, recortes, sobreposições. A liberdade total para revirar o material explica a diferença entre as faixas, que vão do mais experimental e solto, tipo a deliciosa “Flamengo”, ou mais canção propriamente dita, como o encerramento “Tiempos de Luz” – que não deixa de ser estranha a seu modo. Para quem reclama da mesmice na música brasileira, esta aí algo que não é lançado todo dia. Um raro encontro de gerações diferentes, Cajupitanga são novatos, Arthus tem uma década de estrada, onde ambos os artistas parecem estar olhando para frente. Mais que isso: para o que ainda não foi feito por ninguém. E como toda boa ideia ou música, parecia que estava em nós o tempo todo.

Ninguém nomeia uma faixa como “BADU & 3000” inocentemente. Ao fazer referência a Erykah Badu e Andre 3000, Joca entrega muito mais que um dueto com Ebony: uma love song onde querem ser o casal mais quente do hip hop, igual Badu e 3000. Ao citar o casal, Joca também informa suas ambições. Estamos falando de dois artistas imensos, atentos a sua obra, lançando novidades sempre a conta-gotas, com cuidado e esmero. Joca vai por esse caminho. “CORTAVENTO” vem seis anos depois de sua estreia, o já cult “A Salvação É pelo Risco: o Show do JOCA”, trabalho bem menos ouvido do que merece. É um tempo imenso de espera para um artista jovem, todos pressionados a produzir. Mas ao desrespeitar o tempo do mercado, o artista mineiro crescido em Niterói lembra os ídolos e faz valer a espera. “CORTAVENTO” não tem aresta, fio solto, correria ou parte malfeita. Os beats e letra estão em casamento, Joca respeita sua pesquisa musical diversa nas batidas ao escrever e vice-versa. Os temas são muitos: amor, sexo, rua, religião, sonho, desejo. Os ritmos também: “Da linguagem eletrônica contemporânea rumo às batucadas de terreiro, mostrando que tudo isso está conectado”, escreve Joca. Uma prova de sua conexão com o real: o volume de amigos do próprio rapper compartilhando suas impressões sobre o disco nas redes sociais. Impressões honestas, emocionadas, longe de serem mera “divulgação”. É sobre paixão. Paixão pela vida, de gente interessada, na busca por algo.  

O genocídio na Palestina apareceu em algumas poucas músicas brasileiras. O palco foi o lugar das manifestações mais fortes, ainda assim, poucas tamanho o absurdo. Misturando palco e música, Chico Cesár surpreendeu suas plateia com uma inédita sobre o assunto. A faixa foi tocada ao vivo em shows e no fim do ano ganhou versão definitiva em estúdio, apoiada por músicos de origem judaica que também não toleram o genocídio em seu nome. Com forte inspiração nas músicas de protesto de Dylan, donas de longos versos, “Breu” abre com os seguintes: “Imagens da NASA mostram o antes e o depois de Gaza/ Morreu quase todo mundo/ E quem sobreviveu não tem luz”. É só um dos rasgantes lançados por Chico. É breu. 

Fazer música em casa, no quarto, é possibilidade hoje a ponto de virar um gênero – “bedroom pop”. Mas vai lá tentar. A Billie Eilish faz tudo do quarto com o irmão, como cantou Caetano em “Anjos Tronchos”, mas com verbas e apoios monstruosos. A mineira Clara Bicho encarou esse desafio de fazer tudo de casa. Com o tempo acumulou suas composições e foi encontrando seu som, um tanto lo-fi como pede o bedroom pop, mas com um acabamento bem do refinado, parte do seu aprendizado de como tudo funciona no mundo da música – escrever, gravar e lançar essas músicas no mundo para serem ouvidas. Muito artista consegue às vezes só uma dessas três coisas. Paciente, ela lançou seu material aos poucos, single a single. Agora o primeiro EP, “Cores da TV”, prova que a paciência é virtude. Tudo aqui soa bem aos ouvidos, “Clara como a luz do sol”, diria Lulu. E olha só, ela fez tudo junto com o irmão também! Arrepiou, Miss Bicho.

11 – Nigéria Futebol Clube – “Preto Mídia”
12 – BK – “Só Quero Ver
13 – Vera Fischer Era Clubber – “Lololove U”
14 – Zé Ibarra – “Segredo”
15 – Lupe de Lupe – “Vermelho (Seus Olhos Brilhanto Violentamente Sob os Meus)”
16 – Marabu – “Rubato”
17 – Joca – “BADU & 3000” (com Ebony)
18 – Mateus Fazeno Rock – “O Braseiro e as Estrelas”
19 – Valentim Frateschi – “Mau Contato”
20 – Eliminadorzinho – “Você Me Deixa Coisado”
21 – Douglas Germano – “Tudo É Samba”
22 – Oruã – “Casual”
23 – PUSHER174 – “Eu Sou do Contra”
24 – Sophia Chablau & Felipe Vaqueiro – “Cinema Total”
25 – Teago Oliveira – “Desencontros, Despedidas”
26 – Dadá Joãozinho – “As Coisas”
27 – ÀIYÉ e Juan De Vitrola – “De Nuevo Saudade”
28 – Gabriel Ventura – “Fogos”
29 – Nyron Higor – “São Só Palavras”
30 – Ottopapi – “Ruim da Cuca”
31 – Pelados – “Modric”
32 – YMA – “Rita”
33 – Janine Mathias – “Deixa pra Lá”
34 – João Parahyba – “Forró World”
35 – Rachel Reis – “Coisa Rara”
36 – Antropoceno – “O Ar nos Meus Pulmões”
37 – Desastros – “Desastres”
38 – Djavan – “Pra Sempre”
39 – Stefanie – “Fugir Não Adianta” (com Mahmundi)
40 – Flau Flau – “Bye Bye”
41 – Carlos Dafé – “Jazz Está Morto”
42 – Gab Ferreira – “Começos”
43 – Jup do Bairro e Negro Leo – “A ÚLTIMA VEZ QUE VOCÊ F*** COMIGO”
44 – Vanguart – “O Mais Sincero”
45 – Varanda – “Não Me”
46 – Gabriel Ventura – “Fogos”
47 – Drik Barbosa – “Sob Medida”
48 – Alt Niss – “AmorLíquido”
49 – Sessa – “Pequena Vertigem”
50 – Mahmundi – “Saliva Frisson”

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* Como este Top 50 é especial, retrospectivo do ano, a playlist não está representando as dez músicas selecionadas nesta edição. Ela, a playlist, segue o fluxo normal de lançamentos.
** Na vinheta do Top 50, o rapper Don L.
*** Este ranking é pensado e editado por Lúcio Ribeiro Vinícius Felix.

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