Não brigue com a gente. O pódio desta semana ficou mais paulistano do que é recomendável. Acontece. Mas veja bem: é paulistano “bem-humorado”, que ri do feio da cidade e sonha com outra cidade possível, porque não vive sem ela.
Sabe quando um artista é visto em retrospectiva e a crítica tenta achar o ponto de entrada mais tranquilo para os iniciantes? Seguinte, não espere o futuro. A melhor hora para começar a ouvir eliminadorzinho, uma saudação sonicyouthana, é agora. Esse é o ponto de entrada antes da explosão. O humor e olhar da banda formada por Gabri Eliott, João Haddad e Tiago Schützer nunca esteve tão cortante. “A Cidade É uma Selva” zomba da tosquice farialimer, rica de dinheiro e pobre de espírito. Aqui, a poesia do trio transforma os novos riquinhos em bichos escrotos. “Escondam as crianças! Eles estão tentando te convencer… de que nada vai mudar!”
Ná e Zé são parceiros de muito tempo, ambos integrantes do incrível e veteraníssimo grupo Rumo. Ou seja, é até engraçado que agora exista um disco chamado “Ná Canta Zécarlos”, porque já tem tempo que ela canta Zécarlos. Mas o disco não reúne material antigo do Rumo, são inéditas de Zé com produção de Danilo Penteado, multiinstrumentista que é mais que um agregado à formação atual do Rumo. Parte do trabalho já tinha dado as caras em forma de EP em 2023, agora é um álbum – participa também Tulipa Ruiz.
Os rumos do grupo Rumo aparecem muito no novo de Marina Melo, “Ousar Abrir”, seu terceiro álbum e o mais aberto ao experimento, como o nome indica. Para montar o disco, Marina convidou um time que vive a CENA com ela: a produção é de Luiza Brina, já a direção vocal é da Lio e a captação das vozes é de Machado, ambos da banda Tuyo. Ná Ozzetti aparece como participação mais que especial em uma música imaginativa sobre uma cidade de silêncio e Carnaval, de gentileza e doçura, de convívio e harmonia. Uma cidade possível, veja só. Se você quiser, diriam Lennon e Yoko.
Paulo Mendes Campos listou em “O Amor Acaba”, crônica sua de 1964, as diversas moradas do fim do amor. Esqueceu de listar “a ponta da língua”, esse canto nosso onde fica o não dito. É daqui que Gab Ferreira parte: ““Esta música nasceu de conversas interrompidas. É sobre tudo que fica entalado — o quase dito, o sentido mas não expresso”. Gab canta no refrão com algum humor: “Talvez precise de mais coragem/ Ou talvez apenas ir dormir”. É verdade, uma noite bem dormida pode salvar o amor ou então confirmar nossas piores expectativas. “Ponta da Língua” assim como “Carrossel”, single anterior, estarão no primeiro álbum de Gab, previsto para este ano ainda. Promete demais.
E, por falar em coisas que acabam, “Viver É Fatal”, né? E a partir do fim, de cada pequena morte espalhada pela vida, que Gustavo Galo canta a vida na marginal canção que embala a edição especial de dois álbuns lançados no ano passado. Antes separados, “folhas” e “fruto” agora são um disco duplo nomeado simples como “folhas_fruto” e que termina com “Viver É Fatal” e sua catarse. Detalhe: a música foi escrita no dia 9 de novembro de 2023, com Galo triste pela morte de Gal Gosta. Ele soube da notícia indo para um show onde cantava poemas de Torquato Neto, outro tropicalista morto em um 9 de novembro, porém em 1972.
O álbum anterior de Mateus Aleluia, “Afrocanto das Nações”, era um museu, composições oriundas de sua pesquisa sobre a ancestralidade ritualística musical pan-africana. Era o compositor de olho no outro. “Mateus Aleluia”, disco solo que leva seu nome, indica o olhar sobre si mesmo. Ou melhor, um mergulho, para ficar na metáfora indicada pelo mestre e sugerida já na capa do trabalho. E mergulhos profundos exigem fôlego. O álbum é composto de seis faixas longas. A mais curta fica em sete minutos e a mais extensa tem 14 minutos ao reunir três canções em uma só – um jeito interessante de evitar que os dedos apressados tenham como pegar um atalho na viagem. Nessa jornada prazerosa e contemplativa, Mateus canta muito sobre o amor e sua força implacável. “No Amor Não Mando” diz tudo no título. “O amor é minha lei” é o verso que marca a dolorida “Para Tentar Te Esquecer”. Já “Pantera Negra”, outra de amor, em suas mãos não é Marvel, é da mata. Passar esse tempinho com Mateus é encontrar ele, sim, mas se encontrar a si mesmo. É diminuir o passo na corrida. Mais: é questionar a corrida. No violão doce e na voz grave, Mateus dá sua aula de respeito à música e suas exigências próprias. Respeitemos menos o mercado e seus vícios. Só quem trata a música assim pode escrever algo da preciosidade de “Oh, música mostra-me a magia de eu só ser música”. A música que te agradece, Aleluia.
Em um dos momentos mais bonitos da música brasileira, Elza Soares aproveita o final de “Boato” para homenagear as amigas Dalva de Oliveira e Alaíde Costa imitando o canto de cada uma. É de arrepiar – e é um recado da maior voz de todas para as colegas tão grandiosas quanto. Por que lembrar disso? Porque talvez ajude a passar a dimensão do novo trabalho de Alaíde Costa. Em “Alaíde Costa, Uma Estrela para Dalva” ela recupera o repertório da amiga e referência – Dalva já era sucesso quando Alaíde era uma criança. O trabalho também dá conta da generosidade de Alaíde. Bem no momento em que a cantora, parte fundamental da bossa nova, mas injustiçada pela história, finalmente ganha seu reconhecimento, ela abre espaço não para si mesma, mas para outra pessoa que é menos lembrada do que merece. Esse canto para espantar o esquecimento, prática das mais brasileiras, vem recheado de amigos: Maria Bethânia, Roberto Menescal, Cristóvão Bastos, Filó Machado, Léa Freire, Edson Cordeiro, José Miguel Wisnik… E isso porque pegamos talvez metade da lista. Destaque para Amaro Freitas e sua versão desconstruída para a marchinha “Bandeira Branca”.
“O mundo já acabou, você só não percebeu”, canta suavemente Lua Viana na dream bossa “Queda do Céu”, inspirada no livro de mesmo nome escrito por Davi Kopenawa Yanomami. A queda do céu vem da profecia Yanomami, onde um céu já caiu por descuido dos criadores irmãos Omama e Yoasi. O segundo céu é mantido com o cuidado dos xamãs e dos espíritos das florestas. Extinta a floresta, o fim do mundo é a consequência devastadora. A faixa está “Natureza Morta”, primeiro álbum de Lua sob o codinome Antropoceno. Anteriormente ela usou o nome “sonhos tomam conta”. O álbum também é inspirado nas ideias de Ailton Krenak. “Conforme a máxima de Ailton Krenak, o futuro é ancestral. As tecnologias que poderão nos permitir uma atenuação do nosso fim do mundo pertencem àqueles povos que sempre foram fiéis em sua recusa ao projeto civilizatório, em sua ligação inalienável ao planeta, os rios, as beiras do mar, as florestas”, explica Lua. Esse jogo entre tradição e futuro se expressa justamente na ligação da tradição brasileira (samba, bossa e choro) com sonoridades associadas ao futuro – dream pop, pós-rock.
Por falar em conexão ancestralidade e futuro, muito disso acontece nas experimentações de Digestivo, artista de Belém do Pará. Em colaboração com Yvu, ouvimos um beat eletrônico carregado (sabe o som que seu computador faz quando trava? Por aí) e quebradiço, o ritmo é ancestral, é a floresta. Digestivo também parece buscar uma reconexão, musicar o que vai levar o corpo a novamente se conectar com a natureza. Reconstruir o que foi quebrado.
“Antigo e novo ao mesmo tempo, não tem nada igual”, afirma Nego Joca, rapper do Rio Grande do Sul que vai no vaporwave buscar sua forma de também quebrar o tempo – o cara tem Spotify no Walkman, iPhone com antena… Tá todo mundo brisando nisso ao mesmo tempo, será?
11 – Julia Mestre – “Maravilhosamente Bem” (6)
12 – Vovô Bebê – “Star Smoker Sucker” (7)
13 – Catto – “Eu Te Amo” (8)
14 – Eduardo Manso – “FRB 20220610A” (9)
15 – clara bicho – “Meu Quarto” (10)
16 – Stefanie – “Fugir Não Adianta” (com Mahmundi) (12)
17 – Maré Tardia – “Ian Curtis” (13)
18 – Jadsa – “no pain” (14)
19 – Gabriel Ventura – “Toda Canção” (15)
20 – Tim Bernardes – “Prudência” (16)
21 – Marrakesh – “Brincos” (17)
22 – Avenida Paulista, da Consolação ao Paraíso – “No Fundo, no Fundo” (Maurício Pereira e Gui Calzavara) (18)
23 – Vera Fischer Era Clubber – “Lololove U” (21)
24 – Celacanto – “Quadros” (22)
25 – Josyara – “Eu Gosto Assim” (25)
26 – Terno Rei – “Peito” (26)
27 – Rachael Reis – “Jorge Ben” (27)
28 – Pélico – “Te Esperei” (com CATTO) (28)
29 – Bella e o Olmo da Bruxa – “A Melhor Música do Mundo” (29)
30 – Gab Ferreira – “Carrossel” (30)
31 – Enme – “Esperando o Sinal” (com FBC) (31)
32 – Marina Sena – “Anjo” (32)
33 – Mahmundi – “Irreversível” (33)
34 – Superafim – “MOUTH” (com Duda Beat) (34)
35 – Rael – “Onda (Citaçaõ A Onda) (com Mano Brown e Dom Filó) (35)
36 – Leves Passos – “Ecos do Invisível” (36)
37 – Cajupitanga e Arthus Fochi – “Flamengo” (37)
38 – Djonga – “Demoro a Dormir” (com Milton Nascimento) (38)
39 – Jovens Ateus – “Mágoas – Dirty Mix + Slowed Reverb” (39)
40 – Danilo Moralles – “Fervo de Amor” (40)
41 – Ogoin & Linguini – “Vícios Que Eu Gosto” (41)
42 – Bufo Borealis – “Urca” (42)
43 – Terraplana – “Todo Dia” (43)
44 – Marina Melo – “Prometeu” (com Maurício Pereira) (44)
45 – Apeles – “Mandrião (Vida e Obra)” (45)
46 – ÀIYÉ e Juan De Vitrola – “De Nuevo Saudade” (46)
47 – Dadá Joãozinho – “As Coisas” (com Jadidi) (47)
48 – Gabriel Ventura – “Fogos” (48)
49 – Nyron Higor – “São Só Palavras” (49)
50 – BK – “Só Quero Ver” (50)
***
* Entre parênteses está a colocação da música na semana anterior. Ou aviso de nova entrada no Top 50.
** Na vinheta do Top 50, o trio paulistano eliminadorzinho.
*** Este ranking é pensado e editado por Lúcio Ribeiro e Vinícius Felix.