Numa certa sexta-feira de abril, reuniram-se no palco do clube Autêntica, em Belo Horizonte, três artistas da nova safra da MPB: Bruno Berle (AL), Dora Morelenbaum (RJ) e Ana Frango Elétrico (RJ).
Bruno Berle e Dora Morelenbaum foram as atrações anunciadas da noite, cada um com seu show solo e ambos com banda completa. E, de alguma forma, as duas apresentações tiveram uma intersecção, em razão da ilustre participação de Ana Frango Elétrico, que cantou nos dois shows.
Ainda que os caminhos dos três artistas já venham se cruzando ao longo dos anos na nova música brasileira, esse formato de show era inédito até então. Dora apresentou o disco “Pique”, primeiro da carreira solo, lançado no ano passado, enquanto Bruno Berle tocou canções de seus dois álbuns, o “No Reino dos Afetos” (2022) e o “No Reino dos Afetos 2” (2024), tendo o mais recente completado um ano neste mês de abril. E Ana Frango Elétrico, um nome forte que tem integrado as cenas, seja na produção ou, ainda, apenas na inspiração, representou uma espécie de elo de ligação significativa nesse encontro entre diferentes músicos de diferentes lugares.
***
A TAL MÚSICA POPULAR BRASILEIRA
A expressão “Música Popular Brasileira” (MPB), em sua origem, caracteriza um gênero surgido no Brasil durante a década de 1960. A MPB veio com a segunda geração da bossa nova, mais especificamente na cidade do Rio de Janeiro, quando o Brasil passava por um período de radicalização do processo político associado à crise do populismo, que culminou no golpe de 1964.
Durante esse período da repressão ditatorial, a música popular traduziu, de diversas maneiras, as ideias pró-liberdade e pró-democracia, que foram incorporadas por vários compositores e intérpretes ligados à bossa nova.
Artistas como Carlos Lyra, Nara Leão, Geraldo Vandré, Paulo Sérgio Valle e Marcos Valle uniram a sofisticação musical da bossa a elementos típicos e folclóricos da cultura popular brasileira.
Quando se fala em MPB, é impossível não pensar nos tropicalistas Caetano Veloso, Maria Bethânia, Rita Lee, Jorge Ben, Gal Costa e Gilberto Gil.
De extrema importância na história da música brasileira, a MPB nunca foi embora e continua influenciando diversos artistas contemporâneos em termos de arranjos, temáticas das canções, formas de cantar e, até mesmo, na qualidade das gravações e de todo o processo técnico de feitura de um disco. Até hoje existem aqueles que preferem gravar ao vivo ou na fita por exemplo, como se fazia naquela época.
Atualmente, artistas como Bruno Berle, Dora Morelenbaum e Ana Frango Elétrico parecem preencher, mesmo que talvez despretensiosamente, esse espaço de “novos representantes da MPB”.
***
UMA NOVA SAFRA DA MPB?
Ainda que o trabalho de cada um dos três artistas seja repleto de particularidades e influências distintas, Dora Morelenbaum, Bruno Berle e Ana Frango Elétrico acabam integrando um mesmo grupo de artistas contemporâneos em ascensão na CENA e que surgem com várias aproximações estéticas ao trabalho desenvolvido pelos músicos das décadas de 1960 e 1970.
Desde os figurinos setentistas às fotos e gravações em câmeras analógicas, artistas como Tim Bernardes e a banda Bala Desejo, (grupo formado por Dora, Lucas Nunes, Zé Ibarra e Júlia Mestre, ora em hiato), também fazem parte dessa nova leva de músicos que remete bem à turma da MPB, mesclando a tradição à modernidade.
Para Dora Morelenbaum, as referências começaram dentro de casa, com os pais Paula e Jacques Morelenbaum, que estão entre os grandes músicos da história brasileira e chegaram até a compor uma banda com o maestro Tom Jobim (Quarteto Jobim-Morelenbaum), além de participarem de inúmeras gravações icônicas, desde Ryuichi Sakamoto a Gal Costa e Gilberto Gil.
No álbum “Pique” (2024), Paula e Jacques participam nos arranjos e backing-vocals. Além da participação dos pais, o disco de Dora Morelenbaum conta com diversas composições de colegas como Tom Veloso e a paulistana Sophia Chablau. Além de, claro, Ana Frango Elétrico, que foi responsável pela produção do álbum.
Ainda no Rio de Janeiro, apesar de hoje residir em São Paulo, Ana Frango Elétrico está em ascensão na CENA desde o lançamento de seu álbum “Little Electric Chicken Heart”(2019).
Multiartista, Ana está presente em diversas etapas da CENA, seja na produção, na composição e, até, na parte visual.
Seu mais recente álbum, “Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua” (2023), reúne diversas participações como JOCA, e composições de Sophia Chablau e os alagoanos Marina Nemésio e Bruno Berle.
Além das influências mútuas entre os jovens artistas, Ana Frango já revelou grandes inspirações em artistas já consagrados há décadas, como Marcos Valle, com quem já dividiu o palco, e Caetano Veloso.
Já Bruno Berle, apesar da distância de Maceió à capital fluminense, acabou ganhando a admiração dos músicos (e fãs) cariocas. Os dois discos lançados pelo artista, “No Reino dos Afetos” (2022) e o “No Reino dos Afetos 2” (2024), contam com grande participação do amigo Batata Boy, também alagoano, além de outros conterrâneos como Ítallo França e Marina Nemésio. Como algumas referências, Bruno citou, no dia do show mesmo, ícones da MPB como Djavan e Hermeto Pascoal.
Pois bem, o som de Bruno Berle vive entre esses dois mundos: uma mistura entre os clássicos da música brasileira, com aspectos que remetem à uma sensação folclórica e onírica, ao o que há de mais contemporâneo na cena.
***
COLABORAÇÕES: DOS BASTIDORES AO FUTURO!
Em entrevista à Popload, Bruno Berle comenta que conheceu Ana Frango Elétrico em 2019, por conta dos singles “Lembrança” e “Viva”, que o alagoano lançou com Batata Boy. Segundo Bruno, durante a pandemia, as músicas começaram a se espalhar entre os músicos do Rio de Janeiro e Ana acabou entrando em contato.
Já o encontro com Dora Morelenbaum se deu um pouco mais tarde, no Festival Carambola, em Maceió, numa edição que aconteceu online durante a pandemia, em 2021. Na ocasião participaram artistas de Alagoas e artistas do Rio: Bruno Berle, Ítallo França, Flora, Arielly Oliveira, Jonathan Ferr, Dora Morelenbaum, Zé Ibarra e Júlia Mestre, quase todo o Bala Desejo, menos Lucas Nunes.
“Perguntaram se a gente topava gravar junto e a Dora supertopou. As coisas como são, né? A primeira ideia era [gravar] com Ana [Frango Elétrico] e depois virou com Dora. E aí a gente começou a gostar muito da música um do outro. […] Foi muito no tempo do Bala Desejo que eu vim para para São Paulo e Rio e a gente sentia essa efervescência de perto”, comenta Bruno sobre o encontro com a dupla carioca.
Sobre a ideia de realizar o show em conjunto em BH, o artista conta que também gostaria de fazer a apresentação dividindo o palco com Dora e Ana, em formato de voz e violão.
“Eu tô muito feliz em dividir a noite com ela [Dora] aqui porque é um sonho antigo e eu já vinha falando isso para o Santiago [Perlingero] que é empresário dela e foi meu empresário um tempo também”, compartilhou Bruno.
A respeito de colaborações no estúdio, Bruno Berle conta bastidores de “No Reino dos Afetos 2”(2024) .
“Na verdade é que esse disco, o “Reino dos Afetos 2”, iria ser produzido por Ana, e nós, em um certo momento que fomos para o estúdio e ficamos um tempo junto, sentimos que eu e Batata ainda tínhamos muita coisa que precisávamos realizar do nosso jeito, sabe? Que o olhar de Ana era de fora e muito distante do jeito que nós [Bruno e Batata Boy] vínhamos produzindo, trabalhando em casa e tal. A Ana me ligou, disse: “Cara, faz com o Batata, vamos fazer desse jeito e conta comigo para tudo, que que precisar”, compartilhou Bruno.
Além disso, o artista deixa os fãs de sua música esperançosos para futuras colaborações, afirmando o desejo de gravar com Dora e Ana: “É, vai ser daqui a um tempo… Mas vai rolar, né?”
E a nova MPB vai se articulando como pode, a seu jeito, fazendo shows diferentes, colaborando nos bastidores, modernizando o clássico sem deixar de parecer com ele.
***
* CENA viva é o nome da nova série de textos da Popload que busca jogar luz às excelentes movimentações pontuais da CENA musical independente brasileira, cada uma em sua geografia e com suas características próprias. Outros posts da série:
* BH – Beagrime: a inusitada mistura entre os sons de Londres e BH que agita a capital mineira
* RJ: Vera Fischer Era Clubber ilumina um lado B sombrio da nova cena do Rio. Com sarcasmo carioca, claro. Conheça o single “Fantasmas”
* RS: Heróis indies de Porto Alegre, banda Superguidis arma retorno aos palcos depois de 13 anos. O recomeço é em SP, no sábado
* SC: Indie da Ilha: conheça a cena alternativa de Florianópolis que leva ao resto do Brasil a “música manezinha”
* SP: Você já ouviu falar mesmo de emo caipira?
***
* Este texto é de Clara Campos.